LARS VON TRIER EXORCIZA seus DEMÔNIOS em ‘A CASA QUE JACK CONSTRUIU’

Matt Dillon

Jack (Matt Dillon) arrasta uma de suas vítima até seu freezer (pic by IMDb)

Você ficaria no mesmo quarto sozinho com Lars von Trier? Na época do Dogma 95 até Dançando no Escuro (2000), o convite seria mais do que bem-vindo, pois no mínimo renderia uma conversa agradável sobre o futuro do cinema e seus aspectos técnicos. Hoje, depois dos intensos Anticristo, Melancolia, Ninfomaníaca e este A Casa que Jack Construiu, e de ter se comparado a um nazista em 2011, a resposta seria: posso ir acompanhado?

Brincadeiras à parte, para nossa tranquilidade, Lars von Trier exorciza seus demônios através de seus filmes. É possível alegar que se trata de um raro autor que gosta de incomodar o espectador com temas espinhentos como culpa, mortalidade, desejo e prazer, suscitando reflexões que perduram muito além da duração dos filmes.

Neste A Casa que Jack Construiu, acompanhamos 12 anos na vida de um serial killer (um sinistro Matt Dillon), desde seu primeiro incidente que o inicia no crime, até literalmente sua descida para o inferno. No caminho, acompanhado pelo anjo da morte (Bruno Ganz), Jack conta sua história, suas reflexões e como passou a visualizar seus assassinatos como formas de arte.

Matt Dillon Bruno Ganz

Verge (Bruno Ganz) e Jack (Matt Dillon) caminham até o inferno (pic by IMDb)

Na primeira metade do filme, o diretor recupera aquele humor negro e non-sense de Ninfomaníaca e o aplica com maestria nos primeiros incidentes. Além de diálogos absurdos, descobrimos que o assassino sofre de TOC de limpeza, o que rende momentos hilários que trazem o público para o lado do criminoso.

Mas Lars von Trier não está interessado apenas em extrair humor das situações cruéis. Ele questiona a presença de um Deus e sua conivência diante de tantos acontecimentos brutais, o que nos remete a Dostoiévski, que em seu romance “Irmãos Karamazov”, lança o enunciado “Se Deus não existe, tudo é permitido”. Diante da facilidade que o protagonista encontra, estamos sós nesse universo. E, visualmente, o diretor não desaponta ao se inspirar em pinturas renascentistas, na obra literária “A Divina Comédia”, de Dante Allighieri, até no videoclipe de Bob Dylan.

Matt Dillon Bob Dylan

Matt Dillon reproduz cena de videoclipe do cantor Bob Dylan (pic by IMDb)

A respeito de Lars von Trier, é impossível ficar em cima do muro. Ame ou odeie. Aqueles que o odeiam, tacham-no de controverso e polêmico barato. Contudo, para quem assistiu aos primeiros filmes dele, sabe que estamos falando de um diretor que tem propriedade e credibilidade pra ser comparado a artistas que buscam apenas chocar seu público de forma gratuita.

Só para citar alguns nomes, Quentin Tarantino elegeu o roteiro de Dogville um dos melhores já feitos. Paul Thomas Anderson é um profundo admirador e chegou a dizer que “carregaria as bagagens de Lars von Trier para qualquer lugar”, e Martin Scorsese listou Ondas do Destino como um dos 10 melhores filmes da década de 90. Não é pouca coisa.

Considerado ‘Persona non grata’ pelo Festival de Cannes em 2011, ele é perdoado e retorna sete anos depois com A Casa que Jack Construiu, mas agora exibindo fora de competição, parecendo aqueles castigos inúteis de pais coniventes. A verdade é que Cannes sabe que, ao ignorar os novos trabalhos do diretor, seria como dar um tiro no próprio pé. Em tempos politicamente corretos, um evento desse porte necessita de artistas que pensem fora da caixinha.

Nem por isso, o filme é perfeito. A Casa que Jack Construiu comete um deslize que poderia ter sido evitado, mas se voltarmos ao episódio da coletiva de imprensa de 2011 em que ele se define como nazista, entendemos que é uma mensagem pessoal. Na parte final do filme, Trier faz uma breve colagem com cenas de seus filmes anteriores como parte de uma explicação para um mundo virado do avesso. Obviamente, isso foi uma resposta indireta ao seu banimento de Cannes. Porém,  o erro não se baseia apenas em seu egocentrismo, mas por ser incoerente com o objetivo do filme.

Matt Dillon furgão vermelho.jpg

Matt Dillon e seu incidente na sua van vermelha (pic by IMDb)

Apesar do deslize e de ser a favor da redução dos 155 minutos para 135, ainda é um filme singular que pouquíssimos se arriscariam a fazer e suscitar questões filosóficas com um protagonista detestável que menospreza a vida. Numa época de lançamentos cada vez mais genéricos e pobres de idéias, Lars von Trier faz a manutenção de seu reinado no cinema de hoje.

AVALIAÇÃO: Ótimo 8/10
CHANCES DE OSCAR: Nenhuma (os velhinhos da Academia teriam um infarto!)

ESTRÉIA: 01/11/18
Circuito de São Paulo: Reserva Cultural, Espaço Itaú de Cinema (Frei Caneca, Pompéia, Augusta), Kinoplex Itaim e Cynesystem Morumbi Town.

A CASA QUE JACK CONSTRUIU (The House That Jack Built). Dir: Lars von Trier. Elenco: Matt Dillon, Uma Thurman, Riley Keough, Siobhan Fallon Hogan, Sofie GråbølBruno Ganz, Jeremy Davies. 155 min. Censura: 18 anos.

NOTA DE AGRADECIMENTO: Gostaria de agradecer a gentileza da hostess da cabine, Paula Ferraz, e o pessoal da California Filmes, assim como Chico Fireman pelo chute inicial (mesmo sabendo que ele não gostou do filme! rs).

POSTER

Pôster brasileiro de A Casa que Jack Construiu (pic by California Filmes)

%d blogueiros gostam disto: