
O diretor japonês Hirokazu Kore-eda ostenta sua Palma de Ouro. No fundo, a presidente do júri Cate Blanchett. Pic by Eric Gaillard/REUTERS
APESAR DAS EXPECTATIVAS PARA UMA SEGUNDA PALMA DE OURO PARA UMA MULHER, CANNES PREMIOU SEGUNDO FILME ASIÁTICO NESTE SÉCULO
Havia três filmes indicados à Palma de Ouro nesta edição dirigidos por mulheres, o júri era formado por maioria feminina e encabeçada pela presidente Cate Blanchett, e tudo indicava que a segunda Palma de Ouro poderia acontecer desde 1993, quando O Piano venceu, MAS ainda não foi desta vez. Como a própria Blanchett disse em entrevista, adoraria ver uma mulher recebendo a honraria, mas “Palma de Ouro não é o Nobel da Paz”.
O prêmio máximo da noite foi concedido ao cineasta autoral japonês Hirokazu Kore-eda por Shoplifters, um drama sócio-familiar sobre uma menina que vive nas ruas que é adotada por uma família pobre que a ensina a furtar em supermercados. Assim como o título francês, o brasileiro tende a ser “Assunto de Família”. Kore-eda ficou conhecido aqui no Brasil por Depois da Vida (1998), aquele em que as pessoas têm uma semana depois da morte para escolher uma memória, e pelo premiado em Cannes Ninguém Pode Saber (2004), quando o ator-mirim Yûya Yagira levou o prêmio de interpretação masculina.

Cena de Shoplifters, vencedor da Palma de Ouro. Pic by outnow.ch
Contudo, meu favorito dele é Pais e Filhos (2013), que aborda uma difícil situação de troca de bebês na maternidade. Para quem acompanha a carreira do diretor, sabe que ele tem uma predileção por temas familiares, mas como poucos, consegue fazer retratos bastante intimistas de seus personagens. Mesmo em seu penúltimo trabalho, o policial O Terceiro Assassinato, mesmo tendo um crime como foco, ele ainda explora relações conturbadas de família.
Esta foi apenas a segunda Palma de Ouro para um diretor asiático neste século XXI, que não ocorria desde 2010, quando o tailandês Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas levou o prêmio. Apenas um fato curioso, longe de querer cobrar cotas para asiáticos em Cannes. Aliás, boa parte da imprensa apontou que a Palma teria sido uma espécie de prêmio pelo conjunto da obra para Hirokazu Kore-eda, já que ele tem seis passagens pela Croissette. Este foi sua quinta indicação à Palma de Ouro, e ele tinha levado apenas um Prêmio do Júri (tipo 3º lugar) com Pais e Filhos.
Muito bem cotado entre a crítica estrangeira, BlacKkKlansman, de Spike Lee, acabou levando o Grande Prêmio do Júri. Respeitando uma tradição em sua filmografia, a crítica ao racismo está novamente presente nesta trama em que um negro se infiltra na organização Ku Klux Klan. Presente na cerimônia, o diretor aceitou o prêmio em nome da “República Popular do Brooklyn, Nova York”, fazendo menção à sua terra natal. Animado, Spike declarou: “Cannes foi o local perfeito para lançar o filme. Espero que o filme possa nos tirar de nossa estagnação mental de forma global, e voltar à verdade, bondade, amor e sem ódio”, e obviamente, aproveitou para dar cutucadas em Donald Trump: “Com este governo, estamos regredindo no tempo.” Particularmente, torço para que este BlacKkKlansman, assim como futuros trabalhos, voltem a ser os meios de expressão que ele utilizava tão bem para dialogar sobre racismo.

Spike Lee posa com seu Grande Prêmio do Júri por BlacKkKlansman. Pic by NY Daily News
Apesar de não terem levado a Palma de Ouro para casa, das três mulheres indicadas, duas levaram importantes prêmios nesta edição. Enquanto o Prêmio do Júri foi para a diretora libanesa Nadine Labaki por seu filme Capernaum, no qual retrata a vida de um menino de rua em Beirute que decide processar seus pais pela vida que tem, a diretora italiana Alice Rohrwacher dividiu o prêmio de Roteiro por Happy as Lazzaro com o cineasta iraniano Jafar Panahi por Três Faces.
Os prêmios de interpretação foram concedidos à talentos desconhecidos este ano. Do lado masculino, o ator italiano Marcello Fonte, que interpretou um franzino dono de pet shop que precisa tomar uma atitude drástica em Dogman, levou o prêmio, enquanto na ala feminina, a jovem cazaque Samal Yeslyamova conquistou a honra por sua performance como uma imigrante do Quirguistão que abandona seu bebê numa gélida Rússia em Ayka.

Marcello Fonte e Samal Yeslyamova posam com seus prêmios de interpretação de Cannes. Pic by zimbio
Já pelo prêmio de Direção, o polonês Pawel Pawlikowski foi reconhecido pelo drama Cold War, sobre o romance entre dois músicos contada através de elipses, bela fotografia preto-e-branco, e enquadramentos rígidos como conhecemos em Ida, vencedor do Oscar de Filme em Língua Estrangeira em 2014.
Contudo, talvez o que mais tenha chamado a atenção no dia da premiação, tenha sido a presença da atriz italiana Asia Argento. Pouco antes do anúncio do primeiro prêmio, ela surgiu no palco e soltou uma bomba: “Tenho algumas palavras para dizer: Em 1997, fui estuprada por Harvey Weinstein aqui em Cannes. Eu tinha 21 anos. Este festival era a área de caça dele. Quero lançar uma previsão: Harvey Weinstein nunca será bem-vindo aqui novamente. Ele viverá em desgraça, evitado pela comunidade fílmica que o acolheu e acobertou seus crimes. Mesmo esta noite, sentados entre vocês, existem aqueles que ainda devem ser responsabilizados por comportamentos que não pertencem à essa indústria. Vocês sabem quem vocês são, e mais importante, nós sabemos quem vocês são, e não vamos mais permitir que se saiam impunes.”

Asia Argento demonstrando a força feminina no dia do encerramento do festival de Cannes. Pic by Mashable
A declaração da atriz denota que os movimentos feministas como o #MeToo causaram rebuliço no evento. Embora a organização não tenha sido culpada pelo crime sexual ocorrido em 97, tomou providências e disponibilizou pela primeira vez uma linha direta para reportar qualquer ocorrência do tipo ou comportamento suspeito.
Se desse lado o festival soube se adequar aos tempos atuais, a briga com a Netflix devido ao sistema de streaming não se encaixar no antiquado sistema de exibição francês foi um ponto bastante negativo para Cannes. Sem poder contar com as novas produções da empresa americana, repletas de diretores renomados, para suas seleções, o festival francês pode perder relevância no cenário internacional.
BRASIL EM CANNES
Embora não estivesse concorrendo na mostra oficial neste ano, a produção nacional contou com três co-produções premiadas. Pela mostra Un Certain Regard (Um Certo Olhar), o documentário com toques de ficção Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos (intitulado internacionalmente como The Dead and the Others), dirigido pela brasileira Renée Nader Messora e o português João Salaviza, que conta uma jornada espiritual indígena, venceu o Prêmio do Júri.

À direita, os diretores de Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos: João Salaviza e Renée Nader Messora, recebendo o Prêmio do Júri da mostra Un Certain Regard. Pic by Estadão
Co-produzido em parceria com a França e Portugal, o filme Diamantino venceu o Grande Prêmio da mostra da Semana da Crítica. Dirigido pela dupla Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt, o filme tem como protagonista uma espécie de Cristiano Ronaldo, jogador de futebol e modelo. E já O Órfão, de Carolina Markowicz, levou o prêmio Queer Palm de Curta-Metragem.
VENCEDORES DA 71ª EDIÇÃO DO FESTIVAL DE CANNES
COMPETIÇÃO
PALMA DE OURO
Shoplifters
Dir: Hirokazu Kore-eda
GRANDE PRÊMIO DO JÚRI
BlacKkKlansman
Dir: Spike Lee
PRÊMIO DO JÚRI
Capernaum
Dir: Nadine Labaki
DIRETOR
Pawel Pawlikowski (Cold War)
ATOR
Marcello Fonte (Dogman)
ATRIZ
Samal Yeslyamova (Ayka)
ROTEIRO
Alice Rohrwacher (Happy as Lazzaro)
Jafar Panahi, Nader Saeivar (Three Faces)
PALMA DE OURO ESPECIAL
Jean-Luc Godard
UN CERTAIN REGARD
PRÊMIO UN CERTAIN REGARD
Border
Dir: Ali Abbasi
DIRETOR
Sergei Loznitsa (Donbass)
ATUAÇÃO
Victor Polster (Girl)
ROTEIRO
Meryem Benm’Barek (Sofia)
PRÊMIO ESPECIAL DO JÚRI
João Salaviza & Renée Nader Messora (Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos)
OUTROS PRÊMIOS
CAMERA D’OR
Girl
Dir: Lukas Dhont
PALMA DE OURO PARA CURTA
All These Creatures
Dir: Charles Williams
MENÇÃO ESPECIAL PARA CURTA
On the Border
Dir: Shujun Wei
PRÊMIO DO JÚRI ECUMÊNICO
Capernaum
Dir: Nadine Labaki
MENÇÃO ESPECIAL DO JÚRI ECUMÊNICO
BlacKkKlansman
Dir: Spike Lee
QUEER PALM
Girl
Dir: Lukas Dhont
DIRECTORS’ FORTNIGHT
PRÊMIO ART CINEMA
Climax
Dir: Gaspar Noé
PRÊMIO SOCIETY OF DRAMATIC AUTHORS AND COMPOSERS
The Trouble With You
Dir: Pierre Salvadori
EUROPA CINEMAS LABEL
Lucia’s Grace
Dir: Gianni Zanasi
PRÊMIO ILLY DE CURTA-METRAGEM
Skip Day
Dir: Patrick Bresnan, Ivete Lucas
SEMANA DA CRÍTICA
GRANDE PRÊMIO
Diamantino
Dir: Gabriel Abrantes, Daniel Schmidt
PRÊMIO SOCIETY OF DRAMATIC AUTHORS AND COMPOSERS
Woman at War
Dir: Benedikt Erlingsson
GAN Foundation Award for Distribution
Sir
PRÊMIO LOUIS ROEDERER FOUNDATION RISING STAR
Felix Maritaud (Sauvage)
CURTA-METRAGEM
Hector Malot – The Last Day Of The Year
Dir: Jacqueline Lentzou
FIPRESCI
COMPETIÇÃO
Burning
Dir: Lee Chang-dong
UN CERTAIN REGARD
Girl
Dir: Lukas Dhont
Directors’ Fortnight/Critics’ Week
One Day
Dir: Zsófa Szilagyi
CINÉFONDATION
PRIMEIRO PRÊMIO
The Summer of the Electric Lion
Dir: Diego Céspedes
SEGUNDO PRÊMIO
Calendar
Dir: Igor Poplauhin
The Storms in Our Blood
Dir: Shen Di
TERCEIRO PRÊMIO
Inanimate
Dir: Lucia Bulgheroni